Estar é ir

Em “Errante”, disco no qual apresenta 11 canções inéditas, Adriana Calcanhotto canta a identidade a partir do movimento, em meio a canções de amor, de luto e de espelho

Leonardo Lichote

 

Adriana Calcanhotto abre seu 13º álbum, “Errante”, desenhando em versos um autorretrato. Seus contornos, porém, são feitos não de traços definidos, inequívocos. Pelo contrário, ele se constrói a partir de uma identidade que se espalha: “Tenho o corpo italiano/ O nascimento no Brasil/ A alma lusitana/ A mátria africana”. Desenraizada, portanto, como afirma no instante seguinte: “E em tudo o que faço sou não mais do que impostora”.

Ao longo da faixa de abertura, “Prova dos nove”, e dos 38 minutos do disco, Adriana confirma e desmente — em meio a canções de amor, de fim de amor, de cantada, de luto, de espelho — sua condição de “impostora” desenraizada.

Confirma, ao se recusar a assumir um caminho único, uma cara só, seja em música ou em poesia: “I’m formless”, canta ela a certa altura.

E desmente, ao se enraizar na identidade que se ergue a partir da errância: a diáspora negra refletida no funk carioca e no maxixe à la Oito Batutas; os pífanos que se derramam pelo Nordeste a partir de culturas indígenas; a lira grega que remonta à trajetória que a canção fez ao longo dos séculos até chegar aqui; o sangue judeu, sefaradi, do qual se descobriu herdeira e que menciona em dois momentos do disco; os violões que ela usa no disco, carregados de história (um pertenceu a Nara Leão, outro a Orlando SIlva); o título da instalação de Lygia Clark (“A casa é o corpo”) que ela transforma em verso-lema.

— A minha escolha é errar — diz a compositora, explorando a ambiguidade do verbo, que guarda o sentido de “andar sem destino” e de “cometer erro”. — O meu nome não é escolha minha. Nascer no Brasil não é escolha minha. Ter sangue judeu não escolha minha. A minha escolha é a escolha modernista pela alegria.

Adriana faz referência à frase de Oswald de Andrade no “Manifesto Antropofágo”: “A alegria é a prova dos nove”. Em sua canção “Prova dos nove”, ela afirma exatamente “a crença na alegria como prova dos nove”, reiterando sua condição de herdeira do modernismo da Semana de 22. Como fez tantas vezes, aliás, ao longo de sua carreira — o show “A Mulher do Pau-Brasil”, de 2018, é apenas o exemplo mais evidente.

“Errante” é marcado pela escolha pela alegria, a despeito das canções (poucas) que carregam o peso da tristeza. Até porque o disco responde ao desejo da expansão de Adriana, um reflexo natural ao período de recolhimento vivido entre 2020 e 2021, devido à pandemia. Ao contrário de “Só”, seu disco de 2020 que sublinhava aquela solidão enquanto ela era vivida, “Errante” quer, desde seu título, a porta afora.

Esse espírito se mostra não apenas nas canções, quase todas compostas a partir de 2020. As sessões de gravação, realizadas no estúdio da gravadora Rocinante (isolado em Araras, na serra fluminense, cercado de Mata Atlântica), eram a celebração do encontro represado.

Afinal, “Errante” é o que se chama de um “disco de banda”. E por banda, entenda-se Adriana (violão e voz), Alberto Continentino (baixo, piano e lira), Davi Moraes (guitarra e violão) e Domenico Lancellotti (bateria e percussão), com o reforço dos sopros de Diogo Gomes, Jorge Continentino e Marlon Sette. Instalados na casa-estúdio, convivendo diariamente, os músicos construíram juntos com a cantora a sonoridade do álbum, num diálogo essencialmente musical:

— Eu mostrava a canção e eles se colocavam sem a gente falar nada — explica Adriana. — Não tem assembleia, não ficamos combinando quantas vezes fazemos o refrão, essas coisas. O Alberto costuma dizer que depois que eu apresento a música pra eles, ficamos todos esperando o Domenico falar: “Bicho!” (imita, em tom de “eureca!”). Aí cada um vai pro seu lugar e começamos a tocar (risos). É um sonho. Tudo muito espontâneo.

“Prova dos nove” abre o disco lançando pro ouvinte essa intimidade e essa liberdade vivida em Araras. Sua base é um tamborzão delicada e anarquicamente desconstruído em bateria, percussão, drum machine, baixo, piano, violões, lira, trombone, oboé, trompete e sax barítono. Sua melodia, porém, flutua sobre o funk, quase alheia, mas em diálogo com ele. Ao fim,  a batida funk se desloca na direção de outros bailes, localizados em algum lugar entre os anos 1920 e os 1970. Poucos segundos depois, a alegria, prova dos nove, se materializa nas sonoras gargalhadas dos músicos e de Adriana.

Introduzida pelo som de pássaros gravados em Los Angeles por por Mario Caldato (que assina a mixagem do álbum), “Larga tudo”, faixa seguinte, é samba-de-roda buliçoso, com direito a prato-e-faca e harmonia tradicional do gênero, centrada em dois acordes. Evoca o Recôncavo Baiano e a Gamboa, maxixes de Ernesto Nazareth arranjados por Pixinguinha, tudo servindo de terreno ao convite sedutor para que a pessoa a quem o canto se dirige largue tudo e compartilhe com a cantora “a eternidade desta madrugada”. A eternidade errante, portanto, que se materializa ainda mais nitidamente nos últimos versos: “Que quando chegar a alvorada eu já vou na estrada/ Que é o que me leva”.

As batidas no tamborello (instrumento do sul da Itália, com ecos da península ibérica e do mundo árabe) em “Quem te disse?” lançam outras geografias na natureza estradeira de “Errante”. Na letra, A identidade, enquanto marca definidora, é vista como desimportante frente ao amor: “Não me quer porque sou branca/ Não me quer eu não sou moça/ Não me quer por ser mulher/ (…) Se eu não fosse sefaradi/ Novinha, quem disse que o amor vê diferenças”.

Em sua perspectiva feminina sobre o ambiente do samba, “Levou para o samba a minha fantasia” remonta ao disco “O micróbio do samba”, de 2011 — apesar de ter sido composta bem depois. Adriana a escreveu logo antes da quarentena, no carnaval de 2020, por isso, ela mesma nota, parece de “outra época” (“Antes de tudo”, nota a cantora). No instrumental, aparece o mesmo trio da turnê de “O micróbio do samba” — Alberto, Domenico e Davi, aqui acompanhados do trombone de Marlon. No samba picotado pela guitarra de Davi e pelo ritmo de Domenico, o piano de Alberto trafega como o piano de Cristóvão Bastos nos momentos mais soltos do álbum “Nervos de aço”, de Paulinho da Viola.

O rock chacundum “Era isso?”, construído sobre o violão de samba de Adriana, dialoga em seu vigor com o amor-combustível descrito com perplexidade na letra: “Era isso o amor?/ Era isso?/ Arder, arder, queimar/ Consumindo-se em seu umbigo?”. Adriana conta que ela nasce das reflexões do Camões lírico, do “amor é fogo que arde sem se ver”. Os versos, no desespero que antecede a cinza, ameaçam o alvo do amor que desaparece no fogo: “Vai sentir minha falta/ Vai notar as noites rodando tontas sem passar”.

Postada no centro de “Errante” (há cinco faixas antes dela e cinco depois), “Lovely” é central também para o conceito do álbum. É de sua letra em inglês o verso “I’m formless”, já citado aqui, assim como outros fundamentais, como “I came from nowhere”. Ou, ainda mais fundo, “I can be whoever you want me to be”. Posso ser qualquer um que você quiser que eu seja. A errância em estado puro, num samba de suavidade traçada pela flauta de Jorge e pelo bandolim do convidado Rodrigo Amarante.

“Jamais admitirei” soa, em seu arranjo, como areia movediça, uma espiral puxada pela gravidade do baixo. Sua letra se afina na mesma frequência grave, em sua poesia de ausência, luto. A certa altura, os pífanos se contrapõem em voo agudo, como se puxassem o chão para o alto.

O luto segue em “Reticências”, em seu andamento carregado de resignação. A intensificação e o arrefecimento da bateria são os sinais de vida e movimento no cenário estático, da mesma forma que “as cortinas em revoada” da letra. Adriana chama a atenção para o fato de que “as coisas que são de mexer não se mexem”, como nos versos: “Suas camisetas seguem nas gavetas/ As Havaianas pretas no corredor”. A rima repetida reforça o peso do tempo parado.

O xote “Pra lhe dizer” é um movimento na direção do próprio movimento. Ao anunciar o abandono de um amor (“Só pra dizer que eu vou trocar de sonho/ Eu vou mudar de você”), a canção se mostra sutil ode ao errar — no duplo sentido do verbo. O movimento aqui não se guia pela certeza e, mais que isso, prescinde dela (“se não me engano me enganei”, diz o verso, sem almejar a infalibilidade). A certeza que existe é a da errância: “Que o caminho é feito daquilo que se andar”.

Bossa nova com ares de samba-canção e vice-versa, “Horário de verão” faz poesia exatamente sobre a incerteza, a impossibilidade de controle exposta no título. O horário de verão, enfim, nada mais é que uma ficção de controle do tempo por decreto. Porem, o tempo, como o amor, não se controla: “Houvesse modo de fazer o amor obedecer/ Se alguém pudesse comandar o que lhe vai no coração/ Mudar as luzes de lugar/ Horário de verão/ Quisera eu não mais esperar/ Pelo que você jamais prometeu”.

“Nômade”, última faixa, amarra “Errante” com precisão — como não podia deixar de ser, desamarrando-o. Adriana parte de frases de Gilberto Gil, ditas em tom banal e ouvidas por ela ao longo da turnê que fez com ele na Europa, e do já citado título da instalação de Lygia Clark (“A casa é o corpo”). As falas de Gil (“Não tem o que não dê trabalho” e “Não visto a fama o quanto posso”) são convertidas em verso, como ela faz com a obra de Lygia, numa canção que cruza matéria escura e a “chave do hotel passado” esquecida no bolso. O arranjo carrega a tensão da ação, do deslocamento, da mutabilidade, até se desfazer, expandindo-se até a diluição de fronteiras entre a música e o silêncio.

Gil é citado ainda, em “Nômade”, na reprodução de seu verso “Eu mesmo traço”, extraído de “Aquele abraço” (“Meu caminho pelo mundo/ Eu mesmo traço”). Ao ouvir que a canção dialoga ainda com outro verso de Gil, de “Back in Bahia” (“Como se ter ido fosse necessário para voltar/ Tanto mais vivo/ De vida mais vivida, dividida pra lá e pra cá”), Adriana concorda:

— Sim, ir é ir para voltar — diz, antes de rebater, atingindo o âmago de “Errante”. — Mas estar em algum lugar também é estar para sair.