PRESTES A COMPLETAR 90 ANOS, FRANCISCO BRENNAND LANÇA

CAIXA DE QUATRO VOLUMES COM DIÁRIOS ESCRITOS DESDE 1949

Projeto organizado por Marianna Brennand, sobrinha-neta

do artista, chega às livrarias no dia 3 de dezembro 

Um dos mais importantes nomes das artes visuais do país, o pintor, escultor e ceramista pernambucano Francisco Brennand terá suas memórias contadas através de uma série de diários escritos entre 1949 e 2013, que chega às livrarias, em formato de caixa com quatro volumes, no dia 3 de dezembro. A obra, lançada pela editora Inquietude, de Marianna Brennand, sobrinha-neta do artista, traz cerca de 2000 páginas com reflexões do pernambucano sobre história da arte, pintura, filosofia, cinema, seu trabalho artístico e seus amores.

Apesar de ter mantido o conteúdo do diário em segredo, Brennand o escreveu para que um dia fosse descoberto e publicado, como um documento importante que poderia no futuro esclarecer quem era, o que pensava e o que pretendia o artista. O projeto conta com o patrocínio do Itaú Cultural e do Grupo Cornélio Brennand através da Lei Federal de Incentivo a Cultura ( Lei nº 8.313 de 23 de dezembro de 1991) e  com o apoio  cultural da Cepe – Companhia Editora de Pernambuco.

A LITERATURA DE FRANCISCO BRENNAND

Por Isabel De Luca

No dia 10 de janeiro de 1949, às vésperas de embarcar num navio para estudar pintura em Paris, o jovem Francisco Brennand começou a escrever o diário que o acompanharia por grande parte da vida. As aventuras na Europa, a descoberta da cerâmica, a transformação da velha olaria fundada pelo pai em Recife numa espécie de templo dedicado ao seu trabalho, a insistência nas telas como atividade quase secreta, a crescente preocupação literária e uma profusão de personagens reais e imaginados são as chaves que norteiam “Diário de Francisco Brennand”, luxuosa caixa com quatro volumes, num total de aproximadamente duas mil páginas, que chega às livrarias em dezembro. Até agora conhecidos apenas pelo círculo mais íntimo do artista pernambucano, os escritos vêm a público pelas mãos de Marianna Brennand Fortes, sua sobrinha-neta, que recebeu os manuscritos quando dirigiu o premiado documentário “Francisco Brennand”, em 2012, e acabou usando trechos para construir a narração do filme.

Gênero literário cada vez mais dotado de importância crítica, embora ainda seja mais comum como obra póstuma, o diário foi desde sempre parte fundamental do processo criativo de Brennand – que, aos 89 anos, segue vivendo de forma reclusa e trabalhando obsessivamente na oficina que leva seu nome. “Contrariamente a alguns ‘diaristas’ que se orgulham em não reler e rasurar os seus diários, eu me orgulho de fazer as duas coisas com frequência”, diz ele, que participou ativamente da edição, cuidando pessoalmente de todas as notas do autor e até mesmo do editor. Se as memórias refletem sobretudo sobre a História da arte, questões filosóficas, seu legado, seu tempo e seus amores, a literatura predomina sobre o ofício de pintor, escultor e ceramista ao longo de todo o percurso, como aponta o poeta Alexei Bueno no prefácio da caixa – ali descrita como um “monumento literário composto durante mais de meio século”.

A narrativa episódica vai até 1999, dividida em três volumes batizados de “O nome do livro”. Por que parou? “Presumia que depois de 50 anos de anotações um diário já poderia parecer excessivo. Não houve outra razão para o meu silêncio”, sintetiza Brennand. O quarto e útimo tomo, “O nome do outro” – em que aproveita para esclarecer polêmicas como a do obelisco fálico que ergueu às margens do Marco Zero, em Recife –, foi escrito entre 2007 e 2013. O curador Paulo Herkenhoff, que assina o texto de apresentação da caixa, também chama a atenção para a grandiosidade do material: “A escrita constante e reflexiva de Francisco Brennand, iniciada em 1949, é um caso singular de memorialismo no Brasil. Por que um artista plástico potente precisa escrever com essa determinação? O diário não busca legitimar sua arte nem seus relatos de encontros significativos são atos vulgares de esnobismo, mas a revelação de ideias, imagens, escrituras e experiências de que incorporam ao seu processo.”

Herdeiro de uma família de industriais, Brennand decidiu adotar o diário como meio de expressão num momento em que se descobria, de fato, artista. “Durante toda a existência civilizada dos artistas plásticos europeus e alhures, eles praticaram esse hábito de escrever cartas, romances, sonetos e, igualmente, diários. Eugène Fromentin, discípulo de Delacroix, escreveu ‘Dominique’, romance considerado por André Gide uma das obras primas da literatura universal. O pintor surrealista Giorgio de Chirico escreveu ‘Hebdomeros’, e Michelangelo chegou a escrever sonetos”, enumera. “Antes de embarcar para a Europa já era um leitor assíduo das cartas de Van Gogh, de Gauguin, de Camille Pissarro e de outros artistas. Nos meus devaneios de um artista quando jovem, pensei que poderia fazer o mesmo.”

Nas primeiras páginas do “Diário”, cuja edição traz cronologias caprichadas e índices onomásticos que evidenciam a erudição do autor, Brennand já está de malas prontas no Rio, aguardando a partida para Paris. Sempre acompanhado de Deborah – esposa por 20 anos, parceira da vida toda, a mulher a quem dedica os quatro livros da caixa –, ele conta por exemplo que foi levado pelo pintor Almir Mavignier para conhecer a doutora Nise da Silveira no Manicômio do Engenho de Dentro, onde se encantou particularmente pelo trabalho dos internos Raphael Domingues e Emygdio de Barros. “A minha perplexidade avultou-se de tal maneira nos últimos dias de espera que evitarei retornar ao Engenho de Dentro. Sinto-me estranhamente diminuído e mesmo desorientado quanto ao meu aprendizado futuro. Todas as regras tinham sido violadas”, escreveu.

O Volume 1 abarca o período entre 1949 e 1979. Estão lá o encontro com artistas como Léger, Balthus e Picabia (de quem chegou a alugar um antigo ateliê), assim como as temporadas na Espanha e na Itália e a amizade com o conterrâneo Ariano Suassuna. O encantamento com a cerâmica, claro, merece destaque: “Em Paris, a primeira exposição que eu teria de ver foi de cerâmicas de Picasso. Fiquei maravilhado e ao mesmo tempo humilhado. Como é que uma pessoa nascida dentro de um universo cerâmico passou 22 anos ignorando essa admirável forma de expressão artística. Gauguin fez igualmente cerâmica. Joan Miró, Matisse, Léger, enfim todos os pintores da Escola de Paris realizaram uma ambiciosa obra cerâmica e também escultórica”, ele diz. Dez anos, porém, ficaram de fora: Brennand queimou os escritos da fase em que assumiu a Casa Civil do governador Miguel Arraes, em 1963, até aquela em que se instalou nas ruínas da Cerâmica São João para nunca mais sair, a partir de 1971. “O escritor russo Boris Pasternak advertia que deixássemos na vida algumas páginas em branco e nesse período eu me queixava em demasia”, justifica.

O segundo livro transcorre de 1980 a 1989, quando Brennand está focado na reconstrução da Oficina e na produção de suas peças em cerâmica. Em 1981, ele sem alarde retoma a pintura, dedicando-se especialmente às jovens mulheres, em numerosas telas que têm como cenário seu próprio ateliê. “Estou quase acreditando que gosto mais das mulheres do que da pintura. Isso foi o que disse Adolfo Bioy Casares, nas suas impagáveis ‘Histórias de amor’. E eu até acrescentaria que coincide em tudo comigo, não fora o fato de amá-las ainda mais, quando consigo transformá-las em criaturas de tintas aperfeiçoadas”, registrou em janeiro de 1998. O maior tomo é o de número três (1990-1999), em que os escritos adquirem acentuado sabor literário. Nele, o “pintor renegado” – palavras de Suassuna – cria o alter ego Nonato e uma penca de personagens ficcionais, segundo ele “indispensáveis para a própria estrutura do diário, que necessitava da fala diversa de outras personagens”. Criações como Dr. Intruso e Viriata voltam a aparecer no último volume.

A publicação do “Diário de Francisco Brennand” é, de certa forma, o projeto derradeiro da empreitada assumida por Marianna Brennand Fortes desde que virou uma espécie de guardiã da obra do artista. Em 2002, recém-formada em Cinema na Califórnia, ela desembarcou em Recife com o projeto de realizar um documentário sobre o tio-avô. “Lembro que lhe escrevi uma carta, foi uma abordagem formal”, conta Marianna, que jamais esquecera as visitas da infância ao ateliê do (tio artista) parente “de barba comprida”, mas mantinha pouco contato com ele. A ideia era ficar um ano; ficou seis. Sua chegada coincidiu com o processo de inauguração da Academia, primeiro espaço expositivo dedicado à pintura na Oficina Brennand. Ao ver o curador Emanuel Araújo debruçado sobre milhares de telas a maioria sem título, ano ou descrição técnica, resolveu se dedicar à catalogação de todo o acervo – composto de quase três mil obras apenas no ateliê ou nas coleções dos mais mais chegados –, assim como de cartas, textos, fotos.

Enquanto mergulhava na pesquisa do filme sobre o tio-avô, Marianna fez um curta-metragem documentando o processo de preparação de sua tardia mostra de pinturas. Ao mesmo tempo em que montava o documentário de longa-metragem “Francisco Brennand”, com fotografia de Walter Carvalho, – vencedor de dois prêmios na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2012, o Itamaraty de Melhor Documentátio e o de Melhor Filme da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) –, começou a preparar o livro “Universo de Francisco Brennand”, que apresenta de forma inédita o conjunto de sua obra. “Oficialmente, meus compromissos afetivos e morais com o Brennand artista, meu tio Francisco, se encerram com o ‘Diário’. Publicar seus escritos em vida foi uma promessa que lhe fiz. Mas meu compromisso com a obra dele nunca vai acabar. Não está nem começando, eu não fiz nada ainda”, exagera.

Envolvida em projetos de outras vertentes – um filme de ficcção sobre as meninas balseiras do Pará; um combo de disco, show e programa de TV que pretende levar a obra de Chico Buarque às novas gerações, em parceria com a escritora e roteirista Adriana Falcão; o resgate da história do estilista Simão Azulay, com direito a livro, documentário e exposição –, Marianna cita como exemplos do que ainda está por vir a trasformação da Oficina em fundação e a inserção do trabalho do artista nos acervos dos principais museus brasileiros. “Brennand saiu do mercado porque ficou enfurnado na oficina trabalhando. O que tem importância para ele é produzir, é a eterna criação, e de fato se tivesse viajado, circulado, como fez no início da carreira, quando participou da Bienal de São Paulo e expôs em galerias, não poderia construído o que construiu. Ele passou quatro anos só limpando ruínas, reconstruindo o espaço da velha cerâmica de seu pai e não conseguiu mais sair dali. Hoje o lugar é um Museu aberto a visitação pública mas continua sendo o seu ateliê para onde ele vai religiosamente todos os dias, sábado, domingo e feriados. Mas ele sabe que essa dedicação e obstinação tiveram consequências”, pondera ela, que abriu a editora Inquietude para poder publicar o “Diário” com total liberdade.

Brennand, ressalte-se, continua produzindo sem parar. Em dezembro, quando lança a caixa, vai expor 20 paisagens inspiradas na obra do alemão Caspar David Friedrich – todas pintadas este ano – no Espaço Brennand, no bairro recifense de Boa Viagem. Tampouco parou de escrever. “Durante a visita do Papa Francisco ao Brasil, em 2013, escrevi 13 cadernos num estilo absolutamente jornalístico”, revela. Feliz com os rumos de seu diário, o artista não poupa elogios à sobrinha. “Considerava a publicação desse diário algo indispensável para a compreensão do meu trabalho. Quando a Marianna fez o documentário e teve conhecimento de sua existência, de imediato começou a se movimentar com vistas à publicação. Se não fosse ela, este seria um diário póstumo”, reconhece. E divaga: “Presumo que os escritores escrevem no pressuposto de um dia serem lidos por alguém. É claro que eu me dirigia a muitos leitores em particular, homens e mulheres. Noventa deles atualmente estão mortos. Em 1999, esse diário completou 50 anos e mesmo assim permaneceu inédito para o grande público. Publicá-lo agora é como se eu estivesse morto, daí a minha vantagem.”

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